Para pensar:

"Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia."

Mario Quintana

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Cida Moreira lança o álbum 'Soledade', com poesia da modinha ao rock

Décimo álbum da digna discografia de Cida Moreira, Soledade é disco aguardado com grande expectativa pelo seleto público da cantora paulistana, dama dos cabarés mais marginais. Afinal, trata-se do primeiro álbum da intérprete desde A dama indigna (Joia Moderna, 2011), trabalho que revitalizou a carreira (e a agenda) da artista.

Batizado com o nome de cidade encravada no sertão da Paraíba, Soledade transita por trilhas de um Brasil ilógico em rota que vai da modinha ao rock. "Havia manhãs e havia quintais naquele tempo", lembra Cida na abertura do disco, antes de começar a destilar a melancolia poética embutida em Viola quebrada (Maroca), tema de 1928 da lavra musical do poeta paulistano Mário de Andrade (1893 - 1945). Cida canta a modinha sertaneja com o toque virtuoso da viola de Paulo Freire. Sem a preocupação de ser moderna, a cantora se eterniza ao dar voz grave – já com menor extensão na escala musical, mas com alcance cada vez maior do sentido dos versos que interpreta – a canções que parece recolher no ar. Como Moreninha, tema de domínio público ambientado em clima de seresta ruralista no arranjo do violonista Omar Campos, diretor musical – em função dividida com a própria Cida – deste álbum concebido pela cantora com o jornalista Eduardo Magossi.

Soledade tem tom predominantemente caipira nesse trilho inicial em que Cida também pega no ar de um Brasil de tempos idos uma esquecida canção assinada por Nana Caymmi com Gilberto Gil, Bom dia, de 1967. Com os toques da viola de Omar Campos e do acordeom de Mestrinho, Cida louva em tom interiorano o alvorecer e o trabalho. Mas sombras também podem encobrir o raiar do sol e a existência humana, como lembra Um gosto de sol (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972), música na qual a cantora embute trecho de outra parceria de Milton com Bastos, Trastevere (1975). A interpretação maturada de Um gosto de sol – com a exposição de todas as intenções dos versos de Bastos – exemplifica a grandeza do canto atual de Cida. "Que importa o sentido, se tudo vibra?", questiona a intérprete no poema-vinheta de Alice Ruiz inserido no disco após Forasteiro (Thiago Pethit e Hélio Flanders, 2010), a angustiada balada folk contemporânea do repertório do cantautor Thiago Pethit que ganha maior dimensão no tom preciso do canto de Cida, em arranjo no qual sobressai a guitarra de Faiska Borges. Detalhe: na gravação ao vivo de Forasteiro, lançada em clipe, ouve-se somente a voz e o piano de Cida, o que realça a precisão da interpretação da artista. Pois, quase sempre, basta um piano para essa saloon singer nativa mostrar todo o poder de sedução de seu canto lapidado nos palcos e salões. É somente com um piano – o de Lincoln Antonio – que Cida desfolha o Poema da rosa (Jards Macalé e Augusto Boal, 1970, a partir de poema de Bertolt Brecht), instante menos vibrante de Soledade porque os versos acalentadores do poema soam mais fortes do que a música que lhe foi posta.

Em clima de cabaré, Oitava cor (Luis Felipe Gama e Tiago Torres da Silva) também brilha com menor intensidade no arco-íris de Soledade pelo mesmo motivo. Introduzida pela voz grave do cantor paraense Arthur Nogueira, a vinheta Preciso cantar (2013) reproduz trecho de tema composto por Nogueira com o poeta Dand M (não creditado no encarte, na primeira tiragem do disco), abrindo caminho para a trilha mais contemporânea e roqueira seguida por Soledade em sua rota final. Música levada pelo piano autossuficiente de Cida, Feito um picolé ao sol (Nico Nicolaiewski, 1985) reconduz a dama do cabaré e o disco à sua melhor forma, reconectando Cida ao viés marginal que pauta seu canto desde os anos 1970.

No mesmo clima de cabaré, a dama afia os agudos da voz para retratar a cortante Outra cena (1976) exposta por Taiguara (1945 - 1996) há quase 40 anos para denunciar o lado podre do sertão e do Brasil. Na sequência, Soledade atinge ponto alto de vibração com o arranjo demolidor de Construção (Chico Buarque, 1971), criado por Arthur de Faria com cordas que evocam o passo passional do tango. Com pausas estratégicas, o canto de Cida evidencia a tensão que pauta os últimos momentos da personagem épica da canção de Chico.

No mesmo patamar alto, A última voz do Brasil (Tico Terpins, Zé Rodrix, Armando Ferrante Jr. e Próspero Albanese, 1985) – música do grupo paulista Joelho de Porco – ecoa o barulho do rock para destilar finas ironias sobre o país da barriga vazia e dos Carnavais dos hospitais. Com coro e guitarras (de Faiska Borges e Omar Campos), A última voz do Brasil repõe em cena a atriz, a dama indigna, com direito à breve citação do Hino Nacional Brasileiro (Francisco Manoel da Silva e Osório Duque Estrada, 1822) ao fim do arranjo. O Brasil está na U.T.I., mas o pulso ainda pulsa, como lembra Cida na arrasadora releitura de O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Frommer e Tony Bellotto, 1989). Com sagaz citação de A queda (André Frateschi, 2014), o rock do grupo Titãs tem seus versos recitados por Cida em arranjo nervoso e ruidoso, formatado com a eletrônica dos teclados de Ricardo Severo. Mas a marcha As pastorinhas (Noel Rosa e João de Barro, 1934) – alocada como vinheta no fecho de Soledade – sinaliza que, mesmo com as misérias humanas e sociais, o Brasil ainda é capaz de fazer o seu Carnaval. Enfim, (quase) tudo vibra no sentido dado por Cida Moreira a Soledade, grande disco dessa dama capaz de pegar canções pelo ar para dar nova dimensão a elas com seu canto maturado, orgulhosamente marginal.
(Texto de Mauro Ferreira).

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